Autoria: Cristiane Kämpf (Comunicação FCA) / Edição de Imagem: Paulo Cavalheri Luis Paulo Silva / Fotografia: Antonio Scarpinetti Acervo pessoal
Matéria publicada originalmente no Jornal da Unicamp, em 13/10/2025
A Região Metropolitana de Piracicaba (RMP), formalmente instituída em 2021, opera como “metrópole virtual”, ou seja, existente somente no papel, como promessa ou potencialidade, mas ainda não se tornou realidade política e social concreta do território vivido pelas pessoas. É o que revela uma dissertação defendida recentemente na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp. A pesquisa documenta o que está sendo feito no planejamento urbano da região, inclusive em relação a investimentos e aplicações de recursos, e pode auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas locais e regionais.
O estudo, desenvolvido por Luís Felipe Rusignelli e orientado pelo professor Álvaro de Oliveira D’Antona no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, aponta que, apesar de sua existência formal e legal, a RMP carece de planejamento integrado. Falta, ainda, participação social consolidada e presença de governança metropolitana efetiva. Uma das consequências reflete-se sobre o ordenamento territorial e sobre o planejamento da região, entregues aos interesses privados do mercado. Para os pesquisadores, o conceito de “metrópole virtual” reflete uma contradição fundamental e comum do planejamento urbano-regional brasileiro: a ausência de concretização real, por meio de leis, ações governamentais e políticas públicas, daquilo que foi planejado.
A dissertação destaca que o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) da RMP, principal instrumento de planejamento supramunicipal, não foi, até o momento, transformado em lei estadual. Portanto, tem caráter essencialmente normativo e tecnocrático, sem capacidade de desenvolver políticas públicas em escala local. Além disso, ao dividir o território em zonas de interesse urbano, rural e ambiental, o plano tende a simplificar realidades complexas e invisibilizar áreas de transição, práticas agroecológicas e populações marginalizadas que não se encaixam em categorias rígidas baseadas em conceitos considerados ultrapassados. “Essa limitação resulta inclusive em segurança ambiental comprometida, ou seja, é um planejamento que funciona mais como um exercício de poder simbólico. São muitas as assimetrias institucionais, dificuldades técnicas e faltam instrumentos de articulação regional”, avalia Rusignelli.
O autor do estudo alerta que essa condição não é exclusiva da RMP, mas faz parte de um padrão mais amplo de fragilidade institucional observada em diversas regiões metropolitanas do Estado de São Paulo. Essa vulnerabilidade foi agravada pela descontinuidade política, como a extinção, em 2023, da Secretaria de Desenvolvimento Regional (SDR) do Estado de São Paulo. A medida deixou as regiões metropolitanas sem interlocução estadual para políticas de planejamento.
As conclusões do trabalho reforçam que o sucesso do planejamento metropolitano depende não apenas de dispositivos legais e de mapas de zoneamento, mas de sua capacidade de incorporar a complexidade do território, além de reconhecer as múltiplas formas de vida e de construir ferramentas de governança sensíveis às desigualdades e às potencialidades regionais. Rusignelli defende a necessidade de um planejamento mais atento à diversidade territorial, além de fortalecimento institucional e de canais permanentes de participação e cogestão para que a RMP se torne uma metrópole efetiva e sustentável. “Cabe ao planejamento urbano crítico tratar a virtualidade da RMP não como falha, mas como campo de disputa e de possibilidade”, avalia o pesquisador.
Nova ruralidade
O conceito de “nova ruralidade”, apontado pela dissertação, indica que o rural contemporâneo não pode mais ser reduzido apenas à agricultura tradicional ou a um espaço atrasado em relação ao urbano. Ele se caracteriza, conforme Rusignelli, por uma diversidade de funções (produtivas, ambientais, culturais, residenciais) e por maior integração com os mercados urbanos e por formas híbridas de sociabilidade e de uso do território.
De forma complementar, o conceito de “continuum rural-urbano” rompe com a visão dualista e sugere que os territórios se organizam em gradações, com espaços intermediários nos quais atividades urbanas e rurais coexistem, como é o caso das áreas periurbanas e agroecológicas da RMP. “Essa perspectiva permite compreender que a vida social, a mobilidade e as práticas produtivas não se encaixam rigidamente em categorias estanques, mas constituem fluxos interdependentes.”
Para o pesquisador, esses conceitos deveriam ser incorporados de forma mais sistemática ao planejamento territorial brasileiro, que ainda privilegia as cidades como o principal motor do desenvolvimento, classificando o campo em posição secundária. Ao reconhecer o continuum rural-urbano e a nova ruralidade, o planejamento territorial brasileiro ganharia, portanto, “capacidade de formular políticas que integrem funções produtivas, ambientais e sociais do território, assegurando maior justiça espacial e sustentabilidade”, avalia.
Ordenamento territorial
Para o orientador da dissertação, é preocupante quando o Estado impõe um tipo de ordenamento ou estruturação sem dar a devida atenção às vozes que estão “no chão”, ou seja, às pessoas que vivem diretamente a realidade daquele território. “Há, muitas vezes, uma assimetria entre os atores, decorrente da capacidade ou do poder econômico de cada um. Em vez de promover justiça, equilíbrio ou lutar pela equidade, o Estado pode acabar favorecendo um determinado tipo de atuação, regulamentação ou ordenamento territorial. Isso pode levar ao esquecimento do que torna aquela região única. É fundamental pensar: qual é a nossa identidade? E de que forma a definição de uma região metropolitana pode realmente ouvir e dar voz a todos?”, questiona D’Antona.
Ainda assim, considera Rusignelli, instrumentos como o Estatuto da Metrópole, o PDUI e a governança interfederativa revelam a tentativa de sustentar a função pública do Estado, mesmo que em meio a disputas. “No caso da RMP, essa tensão se expressa entre a integração territorial e o reconhecimento da ruralidade, de um lado, e a pressão por zoneamentos voltados à atração de investimentos, de outro. ”
De acordo com os pesquisadores, é necessário refletir criticamente sobre o que pode significar o eventual sucesso da região metropolitana, pois sua implementação pode atravessar processos históricos constitutivos importantes para a região de Piracicaba. “É essencial que o processo de implementação fortaleça as raízes e os elementos que integram e dão sentido a essa região, para além dos chamados indicadores macroeconômicos.”


