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Texto: Cristiane Kämpf / Edição: Portal da Unicamp

No início de 2020, enquanto o governo brasileiro negava a gravidade da pandemia de covid-19 e trabalhava para confundir a população, esconder o número de óbitos e ignorar a falta de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, o coletivo Makers Contra a Covid-19 mobilizou uma rede colaborativa de profissionais e apoiadores e realizou campanhas de produção de escudos faciais com impressoras 3D e máquinas de corte a laser. Em dois meses, por meio de tecnologias colaborativas, foram produzidas mais de 7 mil unidades do produto. Os escudos chegaram gratuitamente a diversos hospitais públicos de São Paulo – ou seja, por meio de uma ação coletiva, os makers colaboraram para minimizar os danos provocados pela pandemia, enquanto vários governantes faziam o oposto disso.

Esse caso envolvendo a covid-19 exemplifica a possibilidade de formarem-se no Brasil, por meio de tecnologias inclusivas, comunidades resilientes, tema analisado pelo pesquisador Rafael de Brito Dias, docente da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, no artigo “Tecnologias inclusivas e tecnologias engajadas: o que nos ensina o movimento maker?”. O trabalho aparece como capítulo no livro Engenharias e outras práticas técnicas engajadas – diálogos interdisciplinares e decoloniais, publicado em 2022 pela Editora da Universidade Estadual da Paraíba.

Em parceria com Adrian Smith, professor de tecnologia e sociedade na Universidade de Sussex (Reino Unido), o pesquisador da Unicamp também analisou o potencial de inclusão social do movimento maker no país com o trabalho “Making in Brazil: can we make it work for social inclusion?”. O termo maker, do verbo em inglês to make (fazer), remete a uma cultura que pretende incentivar as pessoas a fabricarem, reformarem, modificarem seus próprios utensílios.

Os dois trabalhos inserem-se no campo acadêmico dos estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT), que investiga o papel e o impacto da ciência e da tecnologia na sociedade, com uma abordagem crítica e reflexiva. Esse campo emergiu nas últimas décadas como resposta à crescente importância das tecnologias em todas as esferas da vida moderna e à necessidade de compreender suas implicações sociais, políticas, econômicas e culturais.

Esses estudos veem a produção científica e tecnológica e os próprios artefatos, instrumentos e infraestruturas técnicas como não-neutros – ou seja, analisam esses elementos como resultantes de projetos políticos, na medida em que resultados da ação humana e, portanto, carregados de valores morais, interesses (muitas vezes privados) e potencialidades. Esses fatores podem promover responsabilidade social, autonomia, colaboração e pensamento crítico ou fomentar dependência, individualismo, competitividade e consumismo acrítico.

Nos artigos citados acima, o movimento maker brasileiro e alguns fab-labs (abreviação do termo em inglês para “fabricação-laboratório”) da cidade de São Paulo são examinados como potenciais catalisadores de posturas mais críticas – ou mesmo subversivas – por parte de indivíduos e grupos frente ao modelo atual de produção e consumo de tecnologias.

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“Trata-se de locais onde há uma forma particular de fabricação, centrada em indivíduos e coletivos, com o emprego de ferramentas específicas e em espaços compartilhados, com arranjos colaborativos. Muitas vezes, estamos diante de cidadãos que buscam, com a tecnologia, responder a problemas e desafios que nem sempre são efetivamente tratados pelo Estado ou pelo mercado”, observa Dias.

Tais iniciativas, segundo o pesquisador, merecem atenção da academia, pois constituem atos políticos – ainda que, por vezes, não intencionais. “Certas experiências do movimento maker convertem a tecnologia em espaço de disputa e configuram-se como iniciativas de ‘resistência sociotécnica’, pois desenham novas formas de organização do trabalho e da produção a fim de permitir um melhor aproveitamento do imenso potencial criativo latente na sociedade, no sentido de gerar respostas a problemas, necessidades e emergências.”

Em parceria com outros pesquisadores da Universidade, Dias também examinou as controvérsias e o imaginário sociotécnico presentes nas políticas públicas que deram origem ao Cadastro Único para Programas Sociais e ao Programa Minha Casa, Minha Vida. As análises integram os artigos “O Cadastro Único: a consolidação de uma infraestrutura para programas sociais” (Revista de Ciência Política Teoria & Pesquisa) e “A Sociotechnical Analysis of the Infraestructure of the Minha Casa, Minha Vida Program” (Revista Universitas Humanística).

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Tecnociência solidária

A agenda de pesquisa que contribui para o avanço dos ESCT conta com vários defensores na Unicamp, entre os quais o professor Renato Dagnino, do Instituto de Geociências (IG).

O docente criou o conceito de tecnociência solidária, desenvolvido no livro Tecnociência Solidária – um manual estratégico, obra publicada pela editora Lutas Anticapital e disponível para download gratuito na internet. Dagnino propõe que a tecnociência solidária – em oposição à tecnociência capitalista – seja a “plataforma cognitiva para o lançamento da Economia Solidária”, que engloba experiências contra-hegemônicas de organização da produção e consumo de bens e serviços baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão.

Entre os exemplos dessas experiências no Brasil, estão as fábricas ocupadas (como a Flaskô, em Sumaré), as cooperativas de catadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as incubadoras tecnológicas de cooperativas populares e outras iniciativas de empreendimentos solidários que promovem a autonomia dos trabalhadores frente ao capital e a geração de trabalho e renda pelos mais pobres.

Segundo Dias, na atualidade, a produção de conhecimento se dá pela pesquisa tecnocientífica com o objetivo, essencialmente, de produzir bens e serviços, e as grandes empresas definem as agendas de pesquisa e ensino, ou seja, a política cognitiva, mesmo em instituições públicas. O professor defende uma reconfiguração do ensino de tecnociência e um olhar mais atento e crítico em relação às agendas de ensino, pesquisa e extensão que imitam as de países do centro do capitalismo.

Dagnino e Dias chamam atenção para o fato de o livre mercado não criar inovações e tecnologias úteis para todos e dizem faltar direcionamento e financiamento para que as políticas públicas de ciência e tecnologia atendam aos interesses comuns da sociedade.

O mais grave, segundo os dois, é que a confiança depositada atualmente na ideia da inovação como motor do desenvolvimento nos faz renunciar à possibilidade de agir coletivamente no presente para construir o futuro desejado, entregando, assim, a construção desses caminhos para o mercado.