TEXTO: CRISTIANE KÄMPF | FCA- UNICAMP FOTOS: DIVULGAÇÃO | SCIENTIFIC REPORTS EDIÇÃO DE IMAGEM: PAULO CAVALHERI
Como teve início a vida na Terra? A ciência ainda não tem resposta definitiva para essa pergunta. No entanto, pesquisas em Astrobiologia (área que estuda as origens, a evolução inicial, a distribuição e o futuro da vida nos planetas em conexão com o ambiente astronômico) revelaram que corpos celestes, como cometas, asteroides e meteoroides, podem conter um componente essencial para a formação de proteínas em organismos vivos, o aminoácido glicina. Isso indica a possibilidade de esses corpos terem sido os responsáveis por trazerem para a terra primitiva energia e moléculas fundamentais para a formação das reações químicas que deram início à vida no planeta. “Terra primitiva” é a expressão usada para denominar o planeta em seu primeiro bilhão de anos, quando o Sistema Solar ainda estava em formação.
Para simular o impacto de um meteorito no planeta Terra, suas consequências na estrutura química da glicina e se haveria ou não geração de proteínas – resultado que corroboraria a hipótese descrita acima –, dois pesquisadores da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp (FCA) idealizaram um experimento em pequena escala em parceria com colegas da Kyushu University (Japão). Augusto Luchessi, coordenador do Laboratório de Biotecnologia (BioTech), e Ricardo Floriano, do Laboratório de Materiais (LabMat), submeteram uma pequena quantidade do aminoácido a um método de altíssima pressão e torsão (HPT, em inglês, High-Pressure Torsion), técnica inovadora que ainda não havia sido utilizada nas simulações de impacto. Os resultados do trabalho, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foram recentemente publicados em artigo na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
No experimento uma prensa hidráulica de grande dimensão, composta por matrizes rotacionáveis, aplicou pressão sob torção a uma pequena amostra de glicina, do tamanho de um botão de camisa. Crédito: Scientific Reports
De acordo com o especialista em Astrobiologia Douglas Galante, estudos anteriores utilizavam pressão estática em equilíbrio, ou seja, apenas compressão, dissociada de rotação. Segundo o pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), o experimento realizado na FCA inaugura uma forma mais eficiente e realista de conduzir as simulações de impacto de corpos celestes em planetas: “Com este método, estamos abrindo toda uma área de experimentos de efeitos de impactos de meteoros e cometas”.
Luchessi e Floriano observaram um resultado singular: a glicina não gerou uma proteína sob as condições testadas, mas explodiu com tal força que chegou a danificar parte do equipamento utilizado na simulação, sendo parcialmente decomposta em etanol e outros subprodutos ainda não identificados. De acordo com a literatura científica na área, o etanol já foi encontrado em cometas. O que não se sabia era que ele pode ter origem na decomposição de glicina, como demonstrado no experimento. “O resultado foi uma novidade, pois normalmente estamos preocupados com a reação inversa, de formação de glicina, não com sua degradação e os subprodutos da mesma. Os dados podem explicar a presença de etanol em alguns ambientes no meio astrofísico”, afirma Galante.
Na imagem (c), dano causado no equipamento pela explosão da pequena amostra de glicina. Imagem se assemelha ao impacto causado por meteoros na superfície terrestre. Crédito: Scientific Reports
Os pesquisadores da FCA pretendem ampliar as investigações, testando outras condições, por exemplo, misturando metais ou minerais ao aminoácido para simular composições semelhantes à dos meteoritos que colidiram na Terra e, com isso, gerar moléculas orgânicas e até proteínas. “A amostra de glicina que usamos era um tipo de pó compacto em formato de botão, parecida com o sal de cozinha. Depois da explosão, ela virou um material muito duro”, conta Floriano. “Nunca tinha visto isso com metais ou cerâmicos, materiais muito duros quando comparados aos orgânicos. Foi muito interessante observar a reação com um material orgânico. A massa utilizada para a amostra de glicina era muito pequena para liberar energia a ponto de explodir e danificar as matrizes da máquina de HPT”, complementou.
Os pesquisadores da FCA, Augusto Luchesi e Ricardo Floriano, que conduziram o experimento
Segundo Luchessi, é possível que os subprodutos gerados pela explosão da glicina sejam moléculas altamente reativas contendo nitrogênio, componente fundamental de todos os aminoácidos presentes na natureza, bem como dos diferentes nucleotídeos que compõem as moléculas de DNA e RNA. “Muitas perguntas podem ser feitas agora, a partir deste experimento – são novas fronteiras de estudo. Estamos lidando com astrobiologia, e as explicações para a origem da vida na terra, do ponto de vista científico e acadêmico, ainda estão em aberto. Considero que contribuímos com duas peças do quebra-cabeça”, disse.
Impactos tornaram planeta habitável
Normalmente, associamos os eventos de impacto a processos de extinção em massa, como aconteceu com a extinção de dinossauros e outras espécies, mas Galante alerta: a ciência vem mostrando que os choques de corpos celestes foram vitais para a origem da vida na Terra e em outros planetas. “Foram os impactos de asteroides que trouxeram grande parte dos elementos voláteis para a Terra, como os gases presentes na atmosfera e a água dos oceanos”. Segundo ele, os impactos também são responsáveis pela variedade de moléculas orgânicas complexas, que provavelmente se combinaram com outras que estavam se formando no próprio planeta, criando as condições necessárias para o início da química prebiótica e a origem da vida. Possivelmente, foram as colisões com asteroides que forneceram a energia para várias dessas reações, seja por criarem regiões hidrotermais ao redor da cratera de impacto que aumentam a habitabilidade da região, seja por meio do próprio choque, como busca mostrar o experimento. “Nas primeiras centenas de milhões de anos do Sistema Solar, quando havia ainda muitos restos de formação planetária perambulando entre as órbitas dos planetas, os impactos eram muito mais frequentes, e, portanto, devem ter sido importantes forças ambientais que moldaram nosso planeta e contribuíram por torná-lo habitável como é hoje”, afirma o pesquisador.