A Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp se destaca por oferecer disciplinas inovadoras que incentivam o pensamento crítico e interdisciplinar sobre a produção do conhecimento científico e problemas complexos do mundo contemporâneo.
Uma dessas disciplinas, pertencente ao Núcleo Geral Comum, é a NC224, “Biologia e Cultura”, que convida estudantes dos diferentes cursos de graduação a questionar o pensamento dualista que opõe os conceitos de Natureza e Cultura e refletir sobre a produção do conhecimento científico hegemônico – ou seja, aquele normalmente aceito como válido, neutro ou verdadeiro.
Conforme a ementa, o curso propõe uma discussão aprofundada sobre as relações entre os saberes da vida (biologia, história natural do século XVIII e medicina, por exemplo) e as ciências sociais. A disciplina investiga alguns objetos de estudo da botânica, ecologia, zoologia, genética, fisiologia e anatomia a partir de perspectivas de saberes contra-hegemônicos, fronteiriços ou considerados marginais no campo da ciência da vida – como os saberes tradicionais. O foco é dar ênfase a uma produção de conhecimento que não só interroga os divisores entre as ciências, mas que também se dá em comprometimento com a situacionalidade do saber e com a interdisciplinaridade.
A situacionalidade do saber é a ideia de que todo conhecimento está localizado, condicionado ou influenciado pelo contexto específico em que é produzido. Isso inclui fatores como o tempo histórico, o lugar geográfico, a cultura, as relações de poder, a posição social, e a experiência de quem produz o saber.
Temas contemporâneos urgentes como regulações esportivas, epistemicídio, estudos multiespécie e crise climática são abordados ao longo das aulas. Entre os textos trabalhados, destacam-se obras de Malcom Ferdinand, João Paulo Barreto, Donna Haraway, Carolina Cantarino, Anne Fausto-Sterling, Lila Abu-Lughod e Arturo Escobar.
Segundo Lux Ferreira Lima, docente responsável pela disciplina no primeiro semestre deste ano juntamente com a Profa. Carolina Cantarino, a importância desta disciplina para a formação dos estudantes é central, pois ela pretende auxiliá-los a afinar seu olhar crítico sobre a produção de conhecimento científico hegemônico, contextualizando sua trajetória, demarcando pressupostos políticos, econômicos e culturais, e examinando relações de poder que atravessam sua conformação.
“A partir de epistemologias dissidentes e de uma perspectiva interseccional, discutimos como outros saberes sobre a vida e a cultura – por exemplo, saberes de povos tradicionais e perspectivas decoloniais – se organizam, produzem uma compreensão distinta sobre o mundo, e complexificam o que entendemos como ciência e natureza”, explica o docente. A disciplina fornece ferramentas para que os estudantes se engajem na tarefa de democratização de um conhecimento complexo e interdisciplinar ao convidá-los a produzir, como trabalho final, materiais de divulgação científica. Temas como crise climática, desigualdades na história da ciência, discriminação nos esportes, alimentação e justiça ambiental tratados de forma acessível e informada em websites, episódios de podcast e vídeos, dentre outros formatos, se destacaram entre alunos da turma de 2025.
Opiniões dos estudantes e trabalhos finais desenvolvidos
O aprendizado em "Biologia e Cultura" tem reverberado na formação pessoal e profissional dos graduandos, como demonstram os relatos e projetos desenvolvidos.
Vinícius Machado de Freitas, graduando em Engenharia de Manufatura, e fundador de um projeto social com foco ambiental, destaca que o aprendizado essencial foi a interação e articulação de uma linguagem clara sobre aspectos do pensamento científico, especialmente na interface entre biologia e aspectos culturais. Para ele, “a disciplina é de grande ajuda para o desenvolvimento de pesquisas que englobam essa criticidade sobre a relação entre cultura e fatores biológicos e ambientais”. Seu grupo produziu um podcast sobre o impacto da contaminação de rios pela mineração em territórios indígenas, com foco no povo Xikrin do Pará. Veja neste link.
Letícia Dias de Souza, estudante de Ciências do Esporte, ressalta que aprendeu que Biologia e Cultura não devem ser estudadas separadamente, pois todo conhecimento científico está inserido e, portanto, é resultado de um contexto histórico e social. Ela afirma que essas áreas se relacionam a todo momento, não sendo "duas caixinhas" distantes. Seu grupo criou o ebook "Biologia das Cores no Cotidiano", que analisa como as cores são entendidas fisiologicamente e culturalmente em diferentes sociedades. Veja neste link.
Para Mariana Beltrame de Santana, aluna de Nutrição, a disciplina proporcionou muito mais do que aprendizado acadêmico, permitindo refletir sobre pautas que impactam diretamente a sociedade e como a produção científica pode moldar ou ser influenciada por essas agendas. Para ela, “a disciplina contribuiu para o desenvolvimento do pensamento crítico enquanto estudantes e cidadãos”. Seu grupo produziu um vídeo sobre racismo obstétrico, tema que discute a violência obstétrica e sua associação com o racismo no Brasil. Veja neste link.
Por fim, Arthur Ragusa, aluno de Administração Pública, descreve a disciplina como “um caminho para compreender como se construiu uma visão de mundo que justifica e naturaliza divisões e hierarquias de poder, como a oposição entre homem (civilização) versus natureza (selvageria), a racialização de povos, a divisão sexual e o controle de corpos femininos”. Para Arthur, a importância desse conhecimento reside na “produção de subjetividades éticas para futuros profissionais, que enfrentarão dilemas contemporâneos sobre o impacto das organizações nas pessoas e na sociedade, especialmente diante da crise ambiental e da escalada do fascismo”. Seu grupo desenvolveu um site contando a história da eugenia – veja neste link.